Hong Kong — uma cidade em transição

Paulo Campos
7 min readJul 5, 2021
Cena de Chungking Express, dirigido por Wong Kar-wai.

Esse texto faz parte de uma série sobre cinema de Taiwan e de Hong Kong, escrita em conjunto com Victor Martins. O texto escrito por Victor Martins, sobre o cinema de Hong Kong, pode ser lido aqui.

Neste texto quero apresentar algumas informações sobre Hong Kong, especialmente aquelas que possam ajudar os cinéfilos brasileiros a se aventurar pelo cinema da cidade.

Comrades — Almost a Love Story (1996), a comédia romântica de Peter Chan, é um filme que apresenta diversos aspectos da vida em Hong Kong enquanto conta sua história. Acompanhamos Lai Siu (Leon Lai), um imigrante da China continental recém-chegado, atrapalhado e inocente, e Lee Kiu (Maggie Cheung), moradora de Hong Kong e adaptada à luta pela sobrevivência na cidade capitalista. Entre os muitos desafios que se colocam para Lai Siu, um em especial me chamou a atenção: a necessidade de aprender duas línguas novas, e não só uma, já que além do inglês, Lai Siu precisa aprender também o cantonês.

Enquanto me preparava para rever o filme, pesquisei um pouco mais sobre a diferença entre o cantonês e o chinês, e descobri que na verdade a língua chinesa é uma família de línguas, composta por incontáveis dialetos. Entre eles se destacam o mandarim (chamado popularmente de chinês) e o cantonês. Naquele momento eu não sabia, mas estava prestes a entrar em uma toca de coelho, ao melhor estilo Alice no País das Maravilhas. Alguns dias depois de realizar essa simples pesquisa, eu estava matriculado em aulas de mandarim, e acabei entrando no caminho que me trouxe até a redação desde texto.

Agora, depois de alguns meses nessa aventura, gostaria de apresentar uma primeira contribuição, um texto introdutório à história de Hong Kong, com informações que considero interessantes para complementar a experiência com os filmes produzidos naquela cidade. Nenhuma destas informações é essencial para ver os filmes, mas, ainda assim, acredito que conhecer um pouco mais sobre aquela cultura pode facilitar a jornada dos cinéfilos brasileiros e, quem sabe, até despertar um interesse maior pela cultura chinesa.

Localização de Hong Kong e os dialetos da China

Mapa das províncias da China. chokkicx / Getty Images

A China é um país continental, o terceiro maior do mundo em dimensão e o primeiro em população. Sua população é composta de maneira bastante diversa linguisticamente: há inúmeros dialetos espalhados pelas regiões, e estas variações podem ser tão diferentes entre si a ponto de não serem inteligíveis mutuamente. Ou seja, diferente do que acontece entre Suécia e Dinamarca, países com duas línguas diferentes, mas mutuamente inteligíveis, dois chineses de regiões distintas podem não se entender se resolverem usar seus próprios dialetos. [1]

Essa breve explicação é interessante para entender a posição de Hong Kong frente à China. A cidade de Hong Kong está assentada sob um arquipélago e uma península no sul da China, localizada na província de Guangdong (ou Cantão). É uma das províncias mais ricas do país, e bastante distinta culturalmente do norte, onde se localiza a capital da China, Beijing. A província de Guangdong é importante na história chinesa: foi aqui que Sun Yat-Sen iniciou seu movimento que resultou na derrubada do Império e na fundação da República Chinesa (falo um pouco mais disso no texto sobre Taiwan).

No que se refere aos filmes do país, é interessante perceber que naquela província se fala um dialeto distinto do mandarim, o cantonês. Apesar de partilhar o sistema de escrita, a fala é bastante diferente do mandarim, fazendo com que estes dois dialetos não sejam compreensíveis entre si.

Colonização britânica

A particularidade de Hong Kong fica ainda mais evidente quando nos lembramos que durante mais de 100 anos a cidade foi uma colônia da Grã-Bretanha. Conquistada durante a primeira Guerra do Ópio em 1841, a cidade esteve sob administração britânica até 1997, quando se iniciou a devolução à China. São mais de 150 anos de dominação, durante os quais Hong Kong deixou de ser uma pequena vila de pescadores e se tornou um centro financeiro internacional. Junto com os britânicos vieram seus costumes: a língua inglesa, o sistema jurídico da common law, a religião protestante e o parlamentarismo. Essa junção criou uma cultura única àquele local, uma síntese entre a cultura britânica e a chinesa construída a partir do imperialismo, do colonialismo e do capitalismo.

Durante todo este período de colonização, Hong Kong não deixou de estar integrada à China continental. Todos os grandes eventos que afetaram aquele país entre o fim do século XIX e o meio do século XX (como por ex: derrubada do Império e fundação da República em 1911; a guerra civil entre os nacionalistas e os comunistas; a luta conjunta contra a ocupação japonesa; a vitória da revolução comunista em 1949; a revolução cultural da década de 60) também impactaram seu rumo. Dessa forma, inúmeros imigrantes vieram para a cidade em diversos momentos deste período, seja buscando refúgio de perseguições políticas variadas, seja em busca de melhores oportunidades de emprego.

É o caso, por exemplo, da família daquele que provavelmente é o diretor mais famoso da cidade: Wong Kar-wai. Nascido em Shanghai, grande cidade localizada na região central da costa chinesa, sua família emigrou para a cidade de Hong Kong quando ele tinha cinco anos, às vésperas da Revolução Cultural. O diretor relatou em entrevistas sua dificuldade de se adaptar ao novo ambiente, principalmente em função de sua incapacidade de aprender a falar tanto cantonês quanto inglês. O diretor cita este isolamento como um dos fatores que o levou a buscar refúgio nos cinemas (que já contavam com legendas em mandarim, uma inovação importante para a popularização do cinema local).

A Declaração Conjunta Sino-Britânica de 1984, a devolução de 1997 e o ano de 2047

Em 1984, concluíram-se as negociações entre a China e a Grã-Bretanha para a devolução de Hong Kong à soberania chinesa, que viria a ocorrer em 1997. O governo chinês se comprometeu a manter a organização capitalista da cidade durante 50 anos, até o ano de 2047, sob a égide da fórmula “um país, dois sistemas”. Este período de 15 anos entre a assinatura da declaração e a devolução foi marcado por uma grande emigração, na qual mais de quinhentas mil pessoas deixaram a região. É um período de grande ansiedade, um sentimento que transparece nos filmes feitos na cidade naquele momento. Para seguir falando de Wong Kar-wai, não é à toa que em 1997 o diretor tenha realizado um filme na Argentina (Happy Together), com financiamento espanhol, testando assim sua viabilidade no mercado internacional; tampouco é coincidência que o diretor tenha batizado seu filme mais introspectivo de 2046, o ano que antecederá a reintegração total à China continental.

Após 1997, Hong Kong passa a ser uma região administrativa especial da China, que aos poucos estabelece seu domínio e reintegração ao país. Hong Kong continua a funcionar como um grande centro mercantil e financeiro do mundo, e uma porta de entrada para a China em vários sentidos. A cidade se prepara para enfrentar mais uma grande transformação, a terceira em sua breve história como uma cidade em transição.

De volta à Comrades: Almost a Love Story (com spoilers para o filme)

Cena de Comrades: Lai Siu (Leon Lai) e Lee Kiu (Maggie Cheung) andam de bicicleta pela cidade.

Após esta breve incursão na história da China, podemos retornar ao filme de Peter Chan e compreender melhor algumas das suas dinâmicas. Começando com àquela referente a língua, com a qual abri o texto. Descobrimos no final do filme que a personagem Lee Kiu, interpretada por Maggie Cheung, chegou em Hong Kong no mesmo trem (no mesmo banco…) que o personagem de Leon Lai, Lai Siu. Além de sua personalidade bem mais empreendedora, outro fator que permitiu com que Lee Kiu se adaptasse muito mais rápido foi a língua. Afinal, apesar de também ser da China continental, ela é de Guangdong, onde também se fala cantonês. Já Lai Siu, oriundo de outra região da China, fala apenas mandarim, um dialeto julgado interiorano pelos cosmopolitas habitantes de Hong Kong.

Durante o filme, os personagens enriquecem e empobrecem de acordo com a cidade. Frente a uma crise no mercado de capitais, Lee Kiu perde todas as suas economias. Em determinado momento do enredo, ambos têm que migrar para os Estados Unidos da América, como havia feito toda uma geração de chineses. Mais para frente, os chineses em Nova Iorque deixam de ser imigrantes e passam a ser turistas, refletindo a ascensão econômica e política da China no final do século XX e começo do XXI.

Por fim, gostaria de mencionar a cantora Teresa Teng. O título do filme em chinês, 甜蜜蜜; (pinyin: tián mì mì; que pode ser traduzido ao pé da letra como “muito doce”) vem de uma canção de Teresa, que havia falecido em 1995, um ano antes do lançamento do filme. Ela era extremamente popular tanto na China quanto nas comunidades de emigrantes chineses ao redor do mundo, ao ponto de se cunhar a frase “onde houver um chinês, haverá Teresa Teng”. Hoje em dia a cantora é reverenciada como um símbolo cultural da unidade entre China, Hong Kong e Taiwan. Todo esse amor é que motiva Lee Kiu a vender fitas cassetes das músicas de Teresa aos outros imigrantes chineses de Hong Kong.

Como se vê, todas estas informações não são essenciais para se apreciar o grande filme que é Comrades. Sua história é apoiada em sentimentos universais de amor, desejo, saudade. Talvez possamos dizer o mesmo sobre todos os filmes da região. Ainda assim, as especificidades chinesas e hongonguesas estão lá, e pode ser interessante captá-las para se aventurar pelos filmes da cidade.

[1] Isso é balanceado pela difusão do mandarim, o dialeto utilizado como língua oficial pelo governo chinês, que serve como “língua comum”.

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Paulo Campos

Mestrando em Ciência Política na FFLCH-USP. Escrevo sobre cinema e política. Linktree: https://t.co/q71AbFTOge