Marighella (2019) e o culto à derrota

Paulo Campos
4 min readMay 11, 2021

”- Você é maioísta, trotskista, ou leninista?

- Eu sou brasileiro.”

Em primeiro lugar, este filme não deveria ser julgado pela veracidade histórica, seja em sentido positivo, seja negativo. Uma reconstrução perfeita do passado em filme é impossível, sempre sobrarão arestas da encenação. O passado reconstruído sempre será isso, uma reconstrução a partir da vontade do diretor do filme. E são as escolhas de Wagner Moura nessa reconstrução que serão questionadas aqui.

Partindo desse pressuposto, o que é o filme Marighella? Uma reconstrução da vida daquele revolucionário a partir da visão de Moura. Se o diretor pretendia fazer de Marighella um grande revolucionário, se pretendia fazer do passado um presente, ou seja, apontar que as lutas de Marighella são as nossas lutas, o diretor falhou imensamente. O Marighella de Moura (interpretado por Seu Jorge) é um revolucionário que falha em todas as suas tarefas. Incapaz de seguir a linha política de seu Partido, que aparece em diálogo no qual já se aponta aquilo que todos nós sabemos: optar pela luta armada era cometer suicídio. Incapaz de controlar seu grupo político. Afinal, a frase “Ninguém precisa de permissão para cometer um ato revolucionário” é usada para iniciar o ato que leva ao extermínio de seu grupo. Incapaz, também, de fazer frente ao seu oponente, o delegado Lúcio (Bruno Gagliasso).

Segundo a reconstrução de Moura, são esses os erros que levam ao assassinato de Marighella no final do filme. Entretanto, o próprio diretor parece não acreditar em suas escolhas. Pelo contrário, acredita que a partir delas, da forma com que resolveu apresentar-nos o revolucionário, constrói-se um mito. Uma filme de propaganda, capaz de aglutinar forças e catalisar lutas políticas. Ao nos apresentar um revolucionário que falhou, Moura acredita nos apresentar um herói.

Nesse sentido, é trágico que o diretor tenha optado pelo caminho de José Padilha, seu parceiro em Tropa de Elite. O personagem que sai glorificado pela câmera deste filme é o delegado Lúcio. Inspirado no delegado Fleury, um repugnante capacho da ditadura, o delegado Lúcio de Moura é interpretado por um galã, fala grosso com os representantes dos Estados Unidos, e no final do filme vence dos protagonistas (por mais que o texto do filme insista em nos dizer que o delegado perdeu, todos os revolucionários estão mortos no final). O delegado Lúcio, com seus “momentos icônicos” como a execução de dois jovens negros, uma mijada em um poster de Marighella, a tortura de um revolucionário e a falsificação da história, pode vir a se tornar um herói da extrema-direita. Isso é fruto da decisão de Moura de personificar a violência da ditadura em uma personagem, criando um vilão, um antagonista aos melhores moldes dos vilões de filmes de super herói.

Apesar do texto do filme querer condenar Lúcio, e glorificar Marighella, muita vezes o filme faz justamente o contrário. Ao querer denunciar o fascismo, Moura segue os passos de José Padilha e o glorifica. (Nesse sentido, se eu pudesse recomendar um filme aos dois diretores, seria o Tropas Estrelares de Paul Verhoeven) As cenas de tortura, feitas para o público de classe média se emocionar com aquela tragédia, uma tragédia que todos já sabem que aconteceu, e ainda assim desejam ver, agradarão a extrema direita nacional. E isso tudo por escolha de Moura. Afinal, aqueles personagens não sofrem porque sofreram historicamente: sofrem porque Moura resolveu os retratar assim.

Aqueles que se opuseram ao Marighella de Moura no campo da esquerda são classificados como covardes. Tanto o militante que comunica a expulsão de Marighella do Partido Comunista, quanto sua esposa Clara Charf (Adriana Esteves), são reduzidos ao mesmo culto a derrota: o dono de jornal realiza o heroico (e inútil) ato de sacrifício ao publicar uma manchete favorável aos revolucionários; Clara, cujos alertas sobre o erro da tática de guerrilha caem em ouvidos moucos, se resigna em seu papel de dona de casa.

A única revolucionária do grupo de Marighella que sobreviveu, Bella (Bella Camero), nos promete uma continuação para todo aquele sofrimento. Ao final do filme, Moura nos apresenta um novo padre, uma nova igreja e um novo cenário: o campo. A guerrilha vai continuar, apesar de todo o massacre que vimos transcorrer nas 2h40. O que parece ser um final inspirador para o diretor soa mais como uma ameaça para seu público.

E então, onde fica o Marighella de Moura? Derrotado politicamente, só lhe resta a vitória moral, o “lado certo da história”. Sobra só o culto à derrota, a defesa do sacrifício revolucionário como ato heroico, características tão marcantes do pensamento de esquerda predominante hoje em partes da classe média, e ao qual o filme de Moura dá novo fôlego. Marighella torna-se mais uma personificação deste sentimento, um mártir que fará companhia Che Guevara e Rosa Luxemburgo, transformados os três em santos e deixando, assim, de serem revolucionários. Apenas quando derrotados os revolucionários podem entrar neste cânone.

Toda a glória que Moura pretende atribuir à Marighella vem de outros lugares, vem do trabalho de preservação de sua memória feito pelos comunistas brasileiros, de sua reativação na cultura popular produzida pela biografia escrita por Mário Magalhães e pela música do Racionais. O filme de Moura se apropria destes trabalhos anteriores para construir um simulacro para as suas ideias. Marighella torna-se um democrata ao estilo do século XXI, um defensor da democracia e da liberdade de imprensa. Torna-se um “terrorista”, segundo as próprias palavras do personagem. Mostra-se um líder incapaz de conter os impulsos esquerdistas de seus seguidores, incapaz de impor disciplina ao seu grupo, levando todos a morte. Moura acredita que isso faz dele um grande revolucionário. Ou, em hipótese ainda pior, Moura demonstra um total desconhecimento sobre seu próprio filme.

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Paulo Campos

Mestrando em Ciência Política na FFLCH-USP. Escrevo sobre cinema e política. Linktree: https://t.co/q71AbFTOge