Quatro cenários para o governo Bolsonaro — parte II: a Lava-Jato e o mercado

Paulo Campos
6 min readMar 27, 2019

A partir de longas conversas com minha companheira Jennifer Ribeiro, quero traçar quatro possíveis cenários para o futuro do governo Bolsonaro. Importante ressaltar que são cenários esquematizados, no qual presumo as possíveis ações dos atores relevantes a partir de minha interpretação das informações que chegam até nós. Não pretendo realizar aqui um exercício de previsão do futuro.

A atual conjuntura política tem me pressionado a escrever este texto o mais rápido possível. Isto por que com a relação do governo com o Congresso Nacional e com a sociedade civil se deteriorando tão rapidamente, há o risco dos quatro cenários perderem qualquer ligação com a realidade.

Nesta segunda parte, busco caracterizar mais dois atores relevantes, após definir como enxergo a fração olavista e a militar do governo. Por tratar-se do futuro de um governo fragmentado, fruto de uma nova coalizão de interesses, acredito que a melhor forma de tratá-lo seja dividi-lo em segmentos (ou facções), descrevendo brevemente quais são suas motivações e interesses. Novamente, simplificações serão feitas para que a análise torne-se possível, em um texto que se pretende curto e superficial.

A Operação Lava-Jato dispensa apresentações. Iniciada a cinco anos, a operação conduzida por uma aliança de três setores da burocracia nacional — a Polícia Federal (PF), o Ministério Público Federal (MPF) e a Justiça Federal — será tratada neste texto como um agente político. Apesar de seus instrumentos jurídicos, a atuação da operação tem sido apontada como política desde o primeiro momento. O timing das operação costuma a coincidir com objetivos políticos: o filósofo Marcos Nobre afirma: “A Lava Jato, toda vez que a mesa se coloca sobre quatro pés, chuta um. É uma característica da operação desestabilizar permanentemente o sistema político. Para quê? Para ela poder continuar”.

As críticas iniciaram-se no PT, que acusavam os procuradores e o juiz de Curitiba (“a capital nacional da Lava-Jato” como chamam os apoiadores) de influenciar no processo de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff. Um momento marcante neste processo foi a divulgação de conversas obtidas ilegalmente entre Lula e Dilma, nas quais conversavam sobre a nomeação do primeiro ao Ministério da Casa Civil da segunda. A divulgação por parte do juiz responsável pela operação, Sérgio Moro, resultou em uma liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (Gilmar Mendes) que impediu a nomeação.

As acusações de perseguição política continuaram após a derrubada da presidenta. O novo intuito seria impedir a candidatura do ex-presidente Lula. A acusação ganhou força com o julgamento, com base em evidências frágeis, que condenou o ex-presidente pelo crime de corrupção passiva, na época pré-candidato a Presidência da República. Essa decisão foi posteriormente confirmada pela segunda instância da Justiça Federal em tempo recorde, inviabilizando juridicamente a candidatura de Lula. O segundo colocado nas pesquisas eleitorais, Jair Bolsonaro, passou a primeira posição e posteriormente ganhou a eleição.

Até aquele momento, não era possível classificar a ação da operação como bolsonarista. Como analistas vem apontando recentemente, a crítica do PT aos procuradores e a Sérgio Moro estava parcialmente correta. Parcialmente por que o partido é um dos alvos, mas não o único. O alvo parece ser o sistema político da Nova República, fundada com a Constituição de 1988, e centrada na disputa entre PT e PSDB, com o PMDB servindo de base para ambos. Os avanços sobre o grupo político do ex-presidente Michel Temer, responsável por governar o país após o golpe que a própria Lava-Jato fomentou, parecem confirmar esta tese.

Assim, o que une o bolsonarismo e a Lava-Jato é a missão de destruir a Nova República. Essa aliança foi selada com a entrada do agora ex-juiz Sérgio Moro no cargo de Ministro da Justiça, com a incumbência de lutar contra o crime organizado e a corrupção. Há também rumores de que o governo trabalha pela nomeação de Deltan Dallagnol, rosto público dos procuradores que atuam na Operação, para a Procuradoria Geral da Pública. Por fim, a chamada “Fundação Lava-Jato”, que a operação busca criar a partir de dinheiro público da Petrobras também é um interesse relevante para este setor.

O governo trabalha para transformar a operação em política de estado, como evidencia a alardeada “Lava-Jato na Educação”, através da qual planeja-se averiguar se houve irregularidades na gestão da educação nacional nos últimos anos. Suspeita-se que o que o governo queira, na verdade, utilizar da retórica penal para atingir um de seus objetivos políticos: desmonte e controle sobre as universidades públicas federais. Neste sentido, o governo facilita a vida dos analistas ao nomear a nova ação como uma homenagem a antiga. Afinal, o que liga ambas é a utilização de instrumentos jurídicos para fins explicitamente políticos, método que se provou muito eficaz na desqualificação dos oponentes.

O último setor que busco definir é o que chamei no texto anterior de “mercado financeiro internacional e da burguesia nacional brasileira”. É difícil atribuir atividade política coesa a um grupo tão diverso assim. Há interesses diversos e muitas vezes conflitantes entre grupos tão distintos quanto o capital financeiro transnacional — composto pelos grandes bancos nacionais e pelos internacionais com interesses no Brasil — , o agronegócio, a versão modernizada da antiga aristocracia rural, e as indústrias transnacionais e nacionais que operam no país. Ressalto que simplificações serão realizadas aqui.

Considero que o interesse predominante nesta aliança é o do capital financeiro. Foi através de suas agências, de suas vozes na opinião pública, que se consolidou a narrativa de que a única saída para a profunda crise econômica que vivemos no Brasil é a reforma da previdência. Existem outras hipóteses de solução política para a crise econômica, como por exemplo propostas voltadas a geração de empregos, mas, no atual cenário de predomínio do neoliberalismo e de financeirização da economia, predominam soluções que buscam o equilíbrio fiscal, tão caro ao mercado financeiro. Os outros setores da burguesia são subalternos, apesar de também participarem do governo.

A aproximação deste setor com a candidatura Bolsonaro foi gradual. Seu candidato era Geraldo Alckmin, do PSDB, partido preferencial da elite na Nova República. Com o decorrer da eleição, a estagnação eleitoral do paulista fez com que o capital migrasse para a candidatura Bolsonaro. Importante ressaltar que o agronegócio foi um dos setores que aderiu prontamente ao bolsonarismo, com enfáticas manifestações de apoio, recebidas e devolvidas pelo candidato com enfáticas declarações em favor do setor e contrárias aos seus inimigos: a legislação ambiental e as populações rurais e indígenas que se opõem a sua expansão.

A aproximação do capital financeiro se consolidou com o “namoro” (como se referia o presidente) entre Bolsonaro e Paulo Guedes. O economista neoliberal tem formação na Universidade de Chicago, estimada pelo mercado financeiro e berço da ideologia que prega o corte de benefícios sociais, a desregulamentação do mercado financeiro e da mão-de-obra (através da diminuição dos direitos trabalhistas), a redução de impostos (em especial para os empresários) e a privatização de empresas públicas. De acordo com o evangelho, essas medidas seriam solução para a estagnação econômica.

Após a vitória de Bolsonaro, a aliança se consolidou com a nomeação de Guedes para o recém criado Ministério da Economia. O programa econômico descrito no parágrafo anterior tornou-se o programa do governo. Bolsonaro, um antigo defensor de uma espécie de nacionalismo econômico, nunca elaborado pelo atual presidente para além de ameaças de fuzilamento, tornou-se um defensor da desregulamentação econômica, da abertura para o capital externo (com exceção do capital chinês, afinal é necessário agradar a facção olavista).

Com esse panorama dos grupos de interesse ligados ao governo, busquei evidenciar as características de cada um para que se possa ver melhor o que os une e o que os separa. Na próxima (e última) parte deste texto, planejo finalmente debater quais são as quatro possibilidades de futuro que enxergo para o governo Bolsonaro, com base nas interações entre os quatro setores e o próprio presidente. Vou adiantá-los aqui:

  • Bolsonaro supera suas incapacidades e organiza estes setores em um bloco de poder coeso, dentro dos moldes da Nova República.
  • Através de um arranjo interno, Bolsonaro tem seu poder decisório diminuído, restrito apenas as “guerras culturais”, enquanto a luta jurídica e econômica fica a cargo dos ministros e da burocracia.
  • Reorganização ao redor do vice-presidente gal. Mourão.
  • Saída autoritária, com a unificação do bloco na figura de Bolsonaro em um sistema político autocrático.

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Paulo Campos

Mestrando em Ciência Política na FFLCH-USP. Escrevo sobre cinema e política. Linktree: https://t.co/q71AbFTOge