Quatro cenários para o governo Bolsonaro — parte III: cenários

Paulo Campos
12 min readMay 2, 2019

A partir de longas conversas com minha companheira Jennifer Ribeiro, quero traçar quatro possíveis cenários para o futuro do governo Bolsonaro. Importante ressaltar que são cenários esquematizados, no qual presumo as possíveis ações dos atores relevantes a partir de minha interpretação das informações que chegam até nós. Não pretendo realizar aqui um exercício de previsão do futuro.

A primeira parte está aqui.

E a segunda aqui.

A atual conjuntura política tem me pressionado a escrever este texto o mais rápido possível. Isto por que com a relação do governo com o Congresso Nacional e com a sociedade civil se deteriorando tão rapidamente, há o risco dos quatro cenários perderem qualquer ligação com a realidade. Esta é a terceira e última parte desta série de textos. Nos dois primeiros, busquei caracterizar os quatro grupos políticos que constituem o governo Bolsonaro. São eles: os militares, os olavistas, o “mercado”e a Lava-Jato.

Passada esta etapa, esquematizarei quatro futuros possíveis para o governo Bolsonaro. A análise realizada neste texto foca-se no aspecto político mais imediato, na configuração que estes quatro grupos podem vir a assumir com o decorrer do tempo. Após cada um dos cenários, buscarei discorrer sobre os fatores que podem levá-los a ocorrer e também sobre os impeditivos.

  • Bolsonaro supera suas incapacidades e organiza os setores em um bloco de poder coeso, dentro dos moldes da Nova República.

A chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto representa um rearranjo considerável das forças políticas no país. Saem o movimento sindical e os movimentos sociais, cresce a influência das elites econômicas e da burocracia jurídica. A grande novidade fica a cargo dos militares. Existem mais de cem militares em cargos de segundo e terceiro escalão no governo, para além dos ministérios também ocupados por eles.

Ressalto este ponto para poder fazer uma afirmação simples: reorganização como estas são complexas, é necessário algum tempo e bastante habilidade política para que uma estrutura estável se decante. Este processo é dinâmico, com as forças constantemente batalhando. Posto isso, acredito que há uma chance (menor a cada dia) do presidente atuar como “apenas mais um” presidente, ou seja, atuar nos moldes estabelecidos por FHC e Lula.

O principal empecilho para esta alternativa encontra-se nos olavistas. Este grupo advoga para si a posição de referência intelectual e ideológica do governo Bolsonaro, mas não só. Olavo de Carvalho se vê também como o motivo da vitória do capitão na eleição de 2018. Na sua narrativa, foi o cimento ideológico provido por ele e seus alunos que permitiu a formação de um amplo arco de alianças. Entre os 3.000 alunos que já passaram pelo curso olavista há representantes dos três grupos listados anteriormente. Nos anos 90, Olavo de Carvalho era próximo do Comando Militar. Dos anos 2000 para cá, membros da burocracia civil frequentaram seus cursos, incluindo ai procuradores e desembargadores. Por fim, o atual ministro da Educação é um bom exemplo de um olavista ligado ao mercado financeiro.

Isto não justifica a afirmação de Olavo de Carvalho. Para mim a vitória de Bolsonaro deve ser creditada a campanha maciça empreendida nas redes sociais, incluindo o uso de notícias falsas (mas não só); ao atentado sofrido pelo então presidenciável, que lhe deu visibilidade televisiva e uma narrativa vitimizadora; e ao peso das igrejas evangélicas, cujo esforço na última semana eleitoral pode ter sido decisivo.

O que também não refuta completamente a afirmação: de fato vejo no olavismo um elemento agregador, uma ideologia capaz de agregar a elite e a classe média em um processo político. Ou, como teorizou Filipe Martins, que busca para si a posição de ideólogo do governo, as pautas conservadoras serviriam para mobilizar a população, o que possibilitaria a aprovação das reformas neoliberais. Os empecilhos para esta possibilidade são, novamente, os próprios olavistas, que parecem perder-se em lutas canibais ao invés de expandir sua influência (para nossa alegria).

Após este longo parêntesis, volto a hipótese principal: os olavistas, dedicados a destruição, tem se oposto publicamente as tentativas de normalização do governo Bolsonaro, identificadas principalmente nos militares e nos técnicos (vide a luta que ocorreu dentro do Ministério da Educação durante a gestão Vélez). Olavo de Carvalho e o filho do presidente, Carlos Bolsonaro tem emanado opiniões contra o que enxergam ser uma tentativa do “sistema” de anular seu capitão. (O segundo cumpre esta tarefa através de mensagens incompreensíveis, tributário do estilo de Saramago mas sem sua inteligência, nem conteúdo) Mostram-se favorável a esta alternativa os militares e elementos do “alto escalão” do bolsonarismo, como Joice Hasselman, Flávio Bolsonaro e os parlamentares do NOVO, ou seja, aqueles mais ligados ao capital e menos delirantes (me recuso a chamá-los de sensatos).

Me falta competência para fazer uma análise mais detalhada do papel que os integrantes da Operação Lava Jato ocupariam neste cenário. Partindo da definição da Operação que utilizei nos artigos anteriores, enquanto elemento desestabilizador em luta contra a Nova República, tendo a concluir que os juízes e procuradores se oporiam a esta solução, posto que para que ela se efetivasse seria necessário que o presidente negociasse com os parlamentares, algo que estes setores da burocracia buscam criminalizar.

Por fim, arrisco dizer que esta seria uma hipótese extremamente favorável aos capitalistas. Caso Bolsonaro passe a governar como um tucano mais extremado a direita, aprovando sua agenda de reformas neoliberais e privatizações, enquanto ataca opositores políticos e minorias, mas dentro dos marcos da democracia, dentro de uma aparência de Estado Democrático de Direito, o mercado não teria nenhum ônus publicitário em continuar apoiando-o. Bolsonaro se aproximaria aqui daquele que vejo como o candidato ideal para o mercado, João Dória. Não que eu acredite que o mercado retirará seu apoio em caso de uma saída autoritária.

Assim, para que essa hipótese se concretize seria necessário que Bolsonaro agisse como um presidente, como um líder político que concilia interesses particulares e públicos, ideologias conflitantes, em prol de uma agenda de governo. Nunca acreditei que ele tivesse tal capacidade, e, como a realidade nada fez para mudar minha opinião, continuo não acreditando.

  • Através de um arranjo interno, Bolsonaro tem seu poder decisório diminuído, restrito apenas as “guerras culturais”, enquanto a luta jurídica e econômica fica a cargo dos ministros e da burocracia.

Esta alternativa é uma variação da primeira. A diferença fica por conta do papel do Presidente: enquanto na primeira ele ocupa um papel central, nesta ele fica escanteado. Ao perceber que não conseguiria organizar os interesses conflitantes de seus apoiadores políticos, Bolsonaro terceirizaria algumas de suas funções de governo. Uma possível configuração seria sua atuação na agenda moralista, trabalhando em medidas legislativas contra a inclusão de minorias e a favor de medidas armamentistas. A ala liderada por Sérgio Moro ficaria a cargo da criminalização da política e da luta contra o crime organizado, enquanto que a ala de Paulo Guedes cuidaria da agenda econômica. O governo ficaria dividido em feudos, controlados fracamente por um monarca com título, mas sem poder de fato.

Esta não é uma alternativa ruim para Jair Bolsonaro, tampouco para os militares ou para o mercado, desde que esses feudos não se opusessem publicamente. Caso esta hipótese se concretizasse, Bolsonaro deveria defender publicamente as medidas propostas pelos outros grupos políticos, enquanto estes lhe retribuiriam o favor quando convocados.

Esta hipótese me parece improvável por que o presidente precisaria ceder poder para que isto acontecesse, algo rechaçado pelos olavistas, grupo que, não custa ressaltar, inclui figuras extremamente próximas do ex-militar, como seus filhos Eduardo e Carlos. Um exemplo interessante para argumentar contra esta hipótese é o recente embate entre Marcos Cintra, secretário da Receita Federal e pertencente a facção liberal do governo, e o presidente. O priemiro foi desautorizado pelo segundo após afirmar que, em prol da simplificação tributária (uma agenda liberal por excelência), pensava na criação de um novo tributo que atingiria todas as transações financeiras, inclusive o dízimo dos fieis. A desautorização veio logo após a reclamação pública da Bancada Evangélica.

É interessante indagar também qual seria a reação dos militares, que se enxergam como a ossatura por debaixo do governo Bolsonaro. Qual seria a função deles caso se concretizasse esta divisão?

Partindo da premissa de que eu esteja certo, e de que Bolsonaro de fato seja incompetente enquanto líder político, não acredito que essas duas hipóteses se concretizem. Não restam alternativas não-traumáticas. Sim, as duas primeiras alternativas eram as não-traumáticas. Daqui em diante, vamos aprofundando a cova. As primeiras nos enterravam a sete palmos do chão. Nas próximas, o céu é o limite.

  • Reorganização ao redor do vice-presidente gal. Mourão.

Esta alternativa é traumática por que envolve o impeachment do presidente, em uma atuação conjunta dos grupos de interesse que compõe o governo Bolsonaro para reorganizá-lo sem aquele que o nomeia. Dentro dessa hipótese há dois caminhos distintos com finais semelhantes.

No primeiro, Bolsonaro se mostra incapaz de aprovar tanto a agenda econômica quanto a moral e criminalizadora. O apoio dos capitalistas (ou, como costuma a chamar o presidente, a partir de número reduzido de palavras que domina, o “namoro”) não me parece incondicional: Bolsonaro não era seu candidato ideal, posição ocupada por Geraldo Alckmin. Ainda assim, recebeu seu apoio durante a corrida eleitoral. Hoje, na pessoa de Paulo Guedes e sua equipe de economistas, tem uma posição destacada no poder.

Elementos do governo Bolsonaro tem dado pistas que percebem o risco que correm: todas as fichas do mercado foram apostadas na aprovação da reforma da previdência, a última medida de salvação nacional que compõe uma longa série de reformas neoliberais, iniciada com o Teto de Gastos e passando pela Reforma Trabalhista. Carlos (em dias pares) e Flávio Bolsonaro, Joice Hasselman, deputados do Partido Novo, Rodrigo Maia e o próprio Paulo Guedes tem lutado pela aprovação da reforma, muitas vezes contra o próprio presidente. Caso este se mostre inapto para aprovação das reformas, acredito que o mercado possa retirar o seu apoio e passar a buscar alternativas. O mesmo vale para a ala da Lava Jato.

Neste caso, uma possível saída seria a reorganização do governo ao redor do vice-presidente, General Mourão. Um alerta: o General é defensor de teorias da conspiração muito semelhantes às olavistas, como as que defendem que o objetivo do PT era formar uma aliança com o narcotráfico para formar uma guerrilha brasileira através do Foro de São Paulo, além de falar abertamente em autogolpe e em uma nova constituinte não-eleita (estas duas últimas afirmações foram feitas durante a eleição de 2018).

Desde a instauração do novo governo Mourão vem se contrapondo a algumas declarações do presidente, o que fez com que algumas pessoas o adotassem como farol na tempestade em que vivemos. Considero essa tática extremamente equivocada. Mourão é um representante da linha-dura dos militares, tem entre seus heróis o torturador Brilhante Ustra (assim como o presidente), e, caso ele venha a substituir o atual presidente, não acredito que haverá nenhuma mudança substancial. Talvez cessem as declarações esdrúxulas e diárias que fazem tão mal a saúde daqueles que se dedicam a acompanhar as notícias sobre o país, mas só. Os ataques reais continuariam incessantemente.

Feita essa ressalva, existe uma outra hipótese de reorganização ao redor dos militares, personificados pelo presidente Mourão. É o caso em que os sucessos do governo Bolsonaro são responsáveis pela sua queda. Explico: parte do mercado aparentemente tem tolerado as extravagâncias bolsonaristas em nome da aprovação da Reforma da Previdência. Aprovada esta reforma, Bolsonaro pode perder a sua utilidade. Seu custo pode ser maior do que ele tem a oferecer, o que pode torná-lo uma pedra no sapato.

Obviamente nem o presidente nem seus ideólogos concordariam com a deposição, o que geraria disputa com potenciais violentos. Acredito somente agrupando-se ao redor das forças militares poderia-se retira-lo do cargo. O que cria um novo empecilho para aqueles dispostos a tal empreitada: as baixas patentes militares apoiam o presidente não só por questão de hierarquia, mas também por ideologia, vendo nele seu representante.

  • Saída autoritária, com a unificação do bloco na figura de Bolsonaro em um sistema político autocrático.

Dia sete de setembro de 2022: o presidente Jair Bolsonaro faz um pronunciamento em rede nacional, em comemoração aos 200 anos de Independência do Brasil. Lá pelas tantas, ele menciona o atentado que sofreu a exatos 4 anos e 1 dia. Ressalta a luta pela sobrevivência, associa-as as dificuldades do seu primeiro mandato. Ele sobreviveu, e tem lutado para sobreviver no governo também. Entretanto, forças ocultas trabalham contra vocês (sim, vocês, por que Bolsonaro deixará claro que faz tudo por você): os comunistas infiltrados nas universidades, as feministas destruindo a família, os defensores de direitos humanos atacando a polícia. Todos lutando para definir aquilo que te torna brasileiro, buscando desagregar o povo. A facada sofrida em setembro de 2018 é associada ao PSOL, o agente do marxismo cultural (judeu)bolchevique, que atentou contra a própria alma do brasileiro, a tradição, a pátria, encarnados nele mesmo, seu presidente Jair Bolsonaro. Desde antes da posse, as forças tem trabalhado contra o povo brasileiro.

Na luta para cumprir o mandato conferido por você, brasileiro de verdade, Bolsonaro afirma que trabalho dentro da legalidade. Mas a corrupção era maior do que esperada: a infiltração petista era grande demais. Não havia instituições no país, havia agentes do marxismo. Não havia faculdades, havia cursos de formação de comunistas. A solução é uma grande mudança. A Constituição deve ser reformulada, o mandato do presidente deve ser estendido indefinidamente. Os comunistas que restaram no serviço público brasileiro devem ser demitidos e expulsos do país. Uma grande bandeira do Brasil desce no fundo, Bolsonaro se levanta e grita seu lema: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.

Admito que carreguei as cores dramáticas ao escrever os últimos dois parágrafos, me afastando do tom analítico que eu pretendia utilizar nesta série de textos. Esta última hipótese envolve a reorganização do sistema político brasileiro. Ao invés da democracia consagrada na Constituição de 1988, teriamos um modelo político autoritário, próximo daquele instaurado por Putin na Rússia, Erdogan na Turquia ou Orban na Hungria. Formalmente, haveria oposição e eleições livres. A prática seria outra: as eleições são marcadas por fraudes, impede-se a livre manifestação da opinião através do controle da mídia, a oposição que ousa cruzar a linha vermelha é reprimida policialmente e, em casos extremos, opositores morrem em acidentes ou assaltos inexplicáveis. Este modelo tem sido chamado de democracia iliberal.

A passagem para um modelo deste tipo não é repentina. Um eventual pronunciamento nos moldes daquele com que começo essa sessão não é necessário. Através de desrespeitos contínuos às instituições, da cooptação e da repressão, transforma-se uma democracia formal em uma democracia iliberal. No debate acadêmico a respeito destes regimes tem predominado posições de liberais ligado a ciência política, como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, autores de Como as Democracias Morrem, e Yascha Mounk, autor de Povo contra a Democracia. Confesso não ter lido estes livros, mas ambos parecem interessantes para discutir a ascensão destes governos autoritários e nacionalistas. Minha contribuição para a análise destes fenômenos é a sugestão de conciliar a análise das instituições com a das classes sociais e do capitalismo mundial, em crise desde 2008. Ressalto que isto provavelmente já foi feito por alguém (me indiquem caso conheçam).

Neste cenário vejo uma confluência de todos os grupos de interesse. Não vejo nos militares defensores da democracia. Seu discurso hierárquico e o fato deles nunca terem admito os crimes cometidos durante a última ditadura militar (1864–1985) tornam-o péssimos candidatos para a defesa democrática. Os operadores jurídicos da Lava-Jato, em sua cruzada pela purificação nacional, já se mostraram dispostos a sacrificar tudo em favor da luta contra a corrupção, seja ela real ou imaginada. A politização do discurso jurídico e a criminalização do discurso político andam de mãos dadas com o autoritarismo. O discurso de militarização da segurança pública serve perfeitamente para a repressão de qualquer forma de oposição.

Por fim, o capital também pode lucrar com o endurecimento do regime, principalmente se ele continuar a agenda neoliberal e policial do atual governo. A submissão (ou destruição) do que resta da estrutura sindical brasileira cortaria uma das cabeças das classes oprimidas. A retirada dos direitos trabalhistas dá maior liberdade para os empregadores. A terceirização irrestrita diminui seus custos. A superexploração da mão de obra seria agravada. Ao mesmo tempo, os recursos naturais brasileiros poderiam ser ainda mais explorados com uma eventual privatização da Petrobrás, a eliminação da legislação ambiental e o ataque aos direitos dos indígenas. Que fique claro que estas mediadas não são restritas à este cenário, apenas tem sua aprovação facilitada caso não seja possível opor-se publicamente a elas.

  • Conclusão:

Não há como concluir uma análise sobre um governo que ainda está ai. Estes são os quatro cenários que eu enxergo no futuro do governo Bolsonaro, com base no que tem acontecido nos primeiros cinco meses de mandato. Muita coisa pode mudar nos próximos anos. A história não está escrita, ela é produzida no dia a dia, nas ações de cada homem e mulher.

Com esta série de textos, não busquei esgotar a questão. Esta análise também não se propõe a ser científica, já que os conceitos foram utilizados de maneira vaga. O intuito era tornar concreto inúmeros meses de discussões com amigos a respeito do governo Bolsonaro. Nesse sentido, agradeço a todos com quem já conversei sobre o assunto. Agradeço também os leitores que chegaram até o fim desta tortuosa série de textos, e peço desculpas pela demora em finalizá-la.

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Paulo Campos

Mestrando em Ciência Política na FFLCH-USP. Escrevo sobre cinema e política. Linktree: https://t.co/q71AbFTOge