The Raid e sua sequência: algumas palavras sobre filmes de ação da Indonésia

Paulo Campos
6 min readJul 15, 2021

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Cena de The Raid 2, dirigido por Gareth Evans.

The Raid (2011) e sua sequência (The Raid 2, de 2014) são dois frutos da passagem do diretor gaulês Gareth Evans pela Indonésia. O diretor chegou à ilha para dirigir um documentário sobre a arte marcial indonésia, o pencak silat. Enquanto trabalhava nesse primeiro projeto, conheceu Iko Uwais, lutador de pencak silat, e se encantou com o carisma e a habilidade marcial dele, o que o levou a dirigir o longa Merantau (2009), com o recém-descoberto ator no papel principal. A ideia era seguir este filme com uma grande produção, uma história de gangsters na Indonésia, um projeto que se provou muito caro. Os recursos foram reorganizados em uma ideia menos ambiciosa: uma unidade de elite da polícia indonésia invadiria um prédio controlado por uma gangue local. Desta redução nasceu The Raid (2011), um grande sucesso de público tanto na Indonésia quanto nos EUA. Amparado na crescente fama de Iko Uwais, e com muito mais dinheiro, Evans seguiu em frente com sua ideia inicial e transformou The Raid 2 em um filme muito mais amplo tematicamente, com 2h30 (!!!) de duração.

Ambos os filmes podem ser vistos como pilares de fundação de uma espécie de subgênero dos filmes de ação, uma variante indonésia cujas especificidades são fornecidas pelo estilo de luta característico do pencak silat e o gigantesco número de personagens mortos no filme. Esta segunda característica pode ser compreendida a partir do próprio contexto indonésio: o país tem mais de 270 milhões de habitantes e é uma ilha de tamanho médio, o que lhe dá uma grande densidade populacional. Talvez esta seja a razão para que ambos os filmes discutidos sejam preenchidos por ondas e ondas de jovens prontos para serem massacrados pelos protagonistas. A brutalidade do pencak silat aplicada sob aqueles jovens é basicamente o único componente de ambos os filmes, que sofrem, entretanto, de uma terrível falta de ideias temáticas e formais.

Pensando no primeiro filme, composto inteiramente por cenas dentro de um prédio, um diretor com uma noção espacial mais forte poderia criar inúmeras situações interessantes a partir dessa limitação, fazendo do prédio seu próprio universo. Esse não é o caso, e aqui as ideias rapidamente se esgotam. A câmera na mão de Evans se integra nas lutas e desloca o espectador de forma interessante, enquanto Iwo destroça seus oponentes. O carisma de Iwo, que rapidamente se transforma em um “star power” é que mantem o filme em seu caminho, aliado com a admirável vontade de Evans de continuar criando situações violentas. Mas nenhum dos dois é capaz de evitar com que o filme se torne repetitivo, com poucas setpieces marcantes.

Iko Uwais trabalha de forma interessante com o parco material que lhe é dado. Seu personagem, um novato na unidade, é o único que recebe uma motivação para sobreviver: voltar a ver sua mulher, que está prestes a ter o filho do casal. Também é um dos poucos que recebe algum semblante de personalidade, uma atitude mais honrada e justa quando comparada a de seus companheiros policiais. Mas tudo para pôr aí, já que conforme a história progride e ele vai se tornando o personagem principal, essas características são abandonadas em prol da selvageria que seu personagem expõe em suas lutas.

Esta selvageria poderia entrar em conflito com a personalidade “boa” do personagem, mas esse não é o caminho que o filme trilha. Na verdade, poderíamos dizer que ele não segue nenhum caminho. Fazendo algumas comparações, o personagem de Uwais não é um “homem bom com um lado violento”, como o Demolidor da série produzida pela Marvel/Netflix; não é um homem violento que controla sua fúria, deixando-a escapar quando necessário, como o protagonista de Brawl in Cellblock 99; não é um homem tão justo e habilidoso que estaria acima do bem e do mal, como os protagonistas de John Woo. Ele é simplesmente um avatar, como um personagem principal de um jogo beat them up, uma máquina de matar controlada pela audiência.

É aqui que o filme demonstra sua afinidade com os videogames, e não tanto na estrutura de andares dos prédios, que poderia lembrar fases de jogos . Outro ponto que remete aos videogames é a presença de um chefão final, um antagonista tão habilidoso quanto o protagonista. Neste filme esse papel cabe a Yayan Ruhian, em uma grande supresa. Baixo, magro e feio (ou seja, fora do padrão do personagem importante em filme de ação) ele conquista seu espaço no filme e no coração da audiência por causa da sua brutalidade e incrível habilidade marcial, algo que o próprio filme reconhece muito bem ao lhe oferecer as suas duas melhores cenas.[1] Nestas, todo semblante de enredo é esquecido, e o filme se entrega para a selvageria e falta de sentido daqueles combates.

O ator Yayan Ruhian em The Raid (2011).

The Raid 2 (2014) soluciona parcialmente o problema da repetitividade do primeiro libertando-se do espaço do prédio, e se construindo a partir de uma Jakarta que o diretor consegue, em alguns momentos, transformar em seu próprio mundo particular. Liberta-se também mais momentos da câmera na mão, dando ao filme novos ares em alguns momentos interessantes. Um exemplo é a ótima cena da briga na cadeia, na qual os personagens mergulham em uma grande poça de lama, em meio a uma briga entre três grupos diferentes (duas gangues e a polícia), e ainda assim o diretor consegue localizar muito bem os dois personagens importantes para a trama, sem perder a grandiosidade da luta. As cenas de morte do novo personagem de Yayan Ruhian, e introdução e morte dos três novos “chefões” também são bastante interessantes neste sentido, já que o diretor consegue propor problemas e soluções criativas.

O personagem de Iko Uwais, que retorna no papel principal, continua sendo um avatar, cuja única função é distribuir o máximo de sofrimento possível. Enquanto ele luta com personagens “de seu nível”, o filme parece se encontrar naquele abandono completo do enredo, em um abraço da coreografia ultraviolenta que quase cria algo entre os lutadores, mas que não significa muita coisa no filme. As lutas contra ondas infindáveis de lutadores não importantes (os famosos minions dos jogos) cansam o espectador, por mais que haja um esforço maior em diferenciá-las.

A combinação entre o pencak silat e a brutalidade das coreografias parece constituir um novo subgênero dentro dos filmes de ação, aos quais se somariam aos filmes de Gareth Evans aqueles dirigidos por Timo Tjahjanto, como Headshot e The Night Comes for Us (este distribuído internacionalmente pela Netflix, e, portanto, disponível na plataforma). O segundo conta com uma história mais sóbria, e uma maior criatividade em suas set-pieces, criando algumas cenas memoráveis,[2] enquanto continua se apoiando na crescente fama de Iko Uwais e Joe Taslim. O filme sofre dos mesmos problemas dos outros dois discutidos, ou seja, de uma grande falta de ideias temáticas e formais, para além daquele abraço a coreografia espetacular e a violência brutal, mas sem sentido. Nem mesmo a falta de sentido da violência é um tema, apesar das histórias dos três parecerem apontar para isso.

Estes são alguns dos problemas que impedem com que The Raid 1 e 2 sejam grandes filmes, o que não significa que não haja o que se apreciar ali, tanto em questão de coreografia, quanto de atores (o carisma de Iko Uwais, de Yayan Ruhian e de Joe Taslim realmente é grande, e é compreensível que eles venham buscando e conseguindo papéis nos EUA), quanto também em certos empregos da câmera na mão. É um subgênero que merece atenção, e que pode vir a nos surpreender no futuro.

[1] Yayan Ruhian deixa uma impressão tão forte que o diretor optou inclusive por o colocar na sequência, com direito a música clássica no momento de sua morte. Um fan service em uma franquia de apenas dois filmes, um feito marcante e que funciona justamente por causa do carisma do ator.

[2] Meses depois de ver o filme, ainda revejo as vezes a cena do açougue, por exemplo.

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Paulo Campos

Mestrando em Ciência Política na FFLCH-USP. Escrevo sobre cinema e política. Linktree: https://t.co/q71AbFTOge