Taiwan: uma ilha entre China, Japão e Estados Unidos

Paulo Campos
8 min readJul 12, 2021
Cena de A Brigther Summer Day, dirigido por Edward Yang.

Esse texto faz parte de uma série sobre cinema de Taiwan e de Hong Kong, escrita em conjunto com Victor Martins. O texto escrito por Victor Martins, focado no cinema de Taiwan, pode ser lido aqui.

Taipei, década de 1960. Tanques patrulham as ruas e militares dirigem as escolas. Os alunos, rigidamente uniformizados, assistem as aulas sob o olhar vigilante de um quadro de Chiang Kai-shek. Depois da aula noturna, formam gangues e matam uns aos outros. Pelo rádio, anuncia-se quem passou ou não na faculdade, e conta-se notícias de uma distante batalha com os comunistas. Um camponês que se transformou em intelectual em Shanghai, imigrante em Taipei, descobre através da tortura que seus valores tradicionais confucianos já não valem mais nada. Essa é a cidade reconstruída por Edward Yang em A Brigther Summer Day (1991). Tudo isso é passado com clareza pelo diretor, mas ainda assim é possível sair com a sensação de que um espectador mais informado poderia tirar ainda mais do filme.

O mesmo pode ser dito sobre Duosang, ou A Borrowed Life (1993) de Wu Nien-Jien, um filme que retrata o mesmo país, mais ou menos no mesmo período, só que do ponto de vista das populações rurais. O protagonista é um minerador nascido em Taiwan, criado sob o regime colonial japonês, e que por isso ama tudo relacionado ao Japão, e despreza a China, chegando mesmo ao ponto de não falar mandarim. Muitos anos depois, seus filhos lhe chamariam de traidor, e seus netos não conseguiriam se comunicar com ele. O que poderia ter acontecido naquele país para gerar uma distância tão grande entre aquelas três gerações?

O propósito deste texto é ajudar os cinéfilos brasileiros a começar a responder essas perguntas enquanto exploram os filmes de Taiwan. Para isso, e seguindo o modelo estabelecido previamente no texto sobre Hong Kong, vou passar pela história daquela pequena ilha situada na costa da China, ilha que já pertenceu ao Japão e que hoje busca refúgio nos Estados Unidos.

Mapa das províncias da China. chokkicx / Getty Images

Ocupação japonesa e a Guerra Civil da China

A ilha de Taiwan fica na costa sul da China, próxima da província de Fujian. É dali que partiram boa parte dos chineses que ocuparam o território, trazendo consigo seus dialetos, entre eles o min do sul. Tanto os portugueses quanto os holandeses tentaram estabelecer entrepostos comerciais na Ilha, com os segundos inclusive chegando a construir um forte no lugar que viria a ser Taipei. Após a expulsão dos europeus, a ocupação do local continuou e Taipei tornou-se um importante centro comercial, fazendo a ponte entre o Império chinês e outros países da região, como as Filipinas. Em 1895, o império chinês, derrotado militarmente e decadente politicamente, cede a ilha para o império japonês. Tanto Taiwan quanto a Coreia são submetidos a mesma política colonial: estes territórios não deveriam ser considerados colônias, e sim partes integrais do Japão. Desta forma, suas línguas e culturais locais deveriam ser erradicados, e a população deveria ser “niponizada”.

De volta pra o continente, em 1911, Sun Yat-Sen liderou a revolução que derrubou o Império e fundou a República Chinesa. Poucos anos depois, fundaria junto com seus correligionários o Partido Nacionalista, ou Kuomitang. Dentre os membros dessa agremiação, destaca-se Chiang Kai-shek. Dez anos depois, em 1922, funda-se na cidade de Shanghai o Partido Comunista da China. Dentre os fundadores, encontramos um jovem Mao Zedong. Estes serão os personagens definidores do futuro de Taiwan. Entretanto, naquele momento, não podiam imaginar nada próximo disso, já que enfrentavam um outro problema: as duas forças políticas se uniram em torno da missão de completar a unificação da China, que tinha boa parte dos seus territórios governados por senhores de guerra feudais.

A aliança dura até o fim da década de 1920, quando os nacionalistas traem os comunistas e tem início a primeira guerra civil chinesa. Começa a disputa pelo futuro da China, na qual se opunham os nacionalistas de Chiang Kai-shek, herdeiro político de Sun Yat-Sen, e os comunistas de Mao Tse-Tung, que tornar-se-ia Secretário Geral do Partido em 1935. Em 1934, o Japão continua sua expansão imperialista pelo leste asiático e domina os territórios do Norte da China, chamados de Manchúria. Isso leva a um cessar fogo da guerra civil entre nacionalistas e comunistas, e a uma nova aliança para enfrentar o inimigo comum japonês. Este conflito torna a China parte do tabuleiro da Segunda Guerra Mundial, chegando a contar com a participação soviética no último impulso de derrota e expulsão dos japoneses. [1]

Em 1945, derrotados pela ofensiva combinada da União Soviética, dos chineses e dos norte-americanos (que utilizaram duas bombas nucleares nas cidades de Hiroshima e Nagasaki), os japoneses são expulsos de toda a China — inclusive Taiwan, que passa a ser governada pela República da China. A ocupação japonesa na China é bárbara, pois, diferente de Taiwan, os povos não eram vistos como súditos, e sim como servos. Como exemplo da violência, cito o Massacre de Nanjing, perpetrado pelos japoneses no fim do conflito. A guerra prolongada contra o violento ocupante estrangeiro gerou um forte sentimento anti-japonês na população chinesa.

Expulsos os japoneses, tem início a segunda guerra civil chinesa. Os comunistas haviam conquistado prestígio, território e poder ao assumir a vanguarda da luta contra os japoneses, e venceram os nacionalistas em quatro anos. Expulsos do continente, os nacionalistas recuaram para Taiwan em 1949, inaugurando uma nova era para àquela pequena ilha. Da noite para o dia, Taiwan se tornou a sede da República da China. Em 1950, no contexto da Guerra da Coreia, os Estados Unidos da América mobilizam sua marinha para garantir a independência de Taiwan frente à uma eventual invasão continental, criando um laço entre estes dois povos.

O governo do Kuomitang, os 外省人 (weishengren) e a formação de uma nova identidade nacional

O governo da República da China vive uma situação bizarra no cenário internacional, se vendo e sendo vista pelos outros países como a verdadeira China. Além disso, a guerra com os comunistas continuava, e era necessário planejar a invasão e a retomada do continente. Ao mesmo tempo, internamente, os conflitos explodiam, pois junto com o governo nacionalista vieram três milhões de pessoas, os 为圣人 (weishengren), àqueles que vieram do continente.

A população da ilha tem um crescimento exponencial e explosivo. O governo impõe o uso do mandarim em todos os meios de comunicação, inclusive filmes. Este era o dialeto dominante entre os novos habitantes da ilha, vindo do continente, mas não entre aqueles que já moravam lá. O governo impõe também o Estado de Sítio, com censura, repressão às manifestações e perseguições à intelectuais e trabalhadores, sob os quais recai a suspeita de manter vínculos com o continente. Este período é chamado de Terror Branco (contraposto pelo Terror Vermelho na China continental).

A ditadura nacionalista dura até meados dos anos 70, quando se inicia uma transição para um governo de tipo ocidental, com eleições diretas e parlamentarismo. Nestes anos, Taiwan havia se urbanizado e industrializado, e se preparava para tornar-se um tigre asiático nos anos 80, com sua entrada no mercado de eletrônicos. Seu desenvolvimento foi impulsionado tanto pelos Estados Unidos — nação que assumiu a proteção da Coreia do Sul e de Taiwan para se contrapor à Coreia do Norte e à China comunista — quanto pelo antigo colonizador japonês. Surge uma nova sociedade taiwanesa, fruto da junção das raízes chinesas com o desenvolvimento capitalista de tipo ocidental.

A nova onda taiwanesa

Cena de The Time to Live and The Time to Die, dirigido por Hou Hsiao-Hsien.

Nos anos 80, período de abertura tanto na China comunista quanto na Taiwan nacionalista, surge a nova onda taiwanesa, o movimento cinematográfico que formou três cineastas contemporâneos bastante importantes: Edward Yang, Hou Hsiao-hsien e Tsai Ming-liang. Nos filmes destes três diretores, alguns dos eventos citados neste texto tem importância capital, até porque foram essenciais na própria vida destes diretores.

A família de Edward Yang, por exemplo, emigrou de Shanghai, junto com o governo nacionalista. Já a de Hou Hsiao-hsien veio alguns anos antes, o que não muda o fato dele pertencer à uma família continental. O processo construção de uma nova vida na ilha é retratado em filmes como o já citado A Brighter Summer Day, de Yang, e The Time to live and the Time to Die, de Hsiao-hsien. Em ambos, adultos recém chegados do continente buscam encontrar uma nova forma de viver, enquanto crianças constroem sua identidade já naquele novo espaço, muitas vezes em conflito com a geração anterior.

Parte do elenco de A Borrowed Life, de Wu Nien-Jien.

A família de Wu Nien-Jien já nos traz outro caso: seu pai era um taiwanês, nascido e criado na ilha, falante do dialeto min do sul e educado no sistema japonês. Seu pai é o personagem principal de A Borrowed Life, no qual o diretor tentou entender quem era essa figura, apresentar o mundo que o havia gerado, e principalmente de entender qual o seu sentimento perante a ele. Estas perguntas poderiam ser estendidas para a própria Taiwan.

O caso de Tsai Ming-Liang é único nesta seleção: o diretor nasceu na Malásia, em uma comunidade chinesa. Aos 20 anos, seu pai insistiu que ele buscasse alguma espécie de educação formal em Taiwan, e foi isso que o levou a ilha. Em entrevista, o diretor relatou que esta mudança lhe trouxe um forte sentimento de alienação e não-pertencimento. Além disso, Ming-liang chegou no meio de processo de modernização e urbanização de Taipei, e testemunhou seu vertiginoso crescimento. Podemos ver marcas deste processo impressas nos filmes do diretor: seus personagens erram pela cidade, quase como fantasmas, em busca de alguma conexão humana que traga sentido para suas vistas.

Cena de Vive L’Amour, dirigido por Tsai Ming-Liang.

Como afirmei no texto sobre Hong Kong, nada disso é essencial para assistir os filmes de Taiwan. Suas temáticas, como a alienação da vida urbana no capitalismo do século XXI; a busca por uma identidade própria, tanto no nível individual quanto nacional; ou as dores de tornar-se adulto, são suficientemente universais para que um espectador do Brasil consiga se relacionar com eles. Ainda assim, conhecendo-os, e buscando sempre saber mais, acredito que possamos seguir mais tranquilos por esta jornada.

[1] A Trilogia da Humanidade, dirigida por Masaki Kobayashi, fornece um ótimo e desolador retrato deste conflito, sob o ponto de vista de um humanista japonês. O primeiro filme se foca na ocupação e colonização da Manchúria, e os outros dois no conflito militar propriamente dito.

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Paulo Campos

Mestrando em Ciência Política na FFLCH-USP. Escrevo sobre cinema e política. Linktree: https://t.co/q71AbFTOge